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Breves notas sobre o conhecimento das formigas cortadeiras na agricultura brasileira, envolvendo aspectos da história, cultura, ciência, educação, ecologia, economia e manejo agrícola:

I – As formigas cultivadoras de fungos são insetos latino-americanos
II – As formigas cultivadoras de fungos e os povos indígenas americanos
III – As formigas cortadeiras e os colonizadores europeus
IV – Os primeiros estudos e campanhas de controle das cortadeiras no Brasil
V – A importância ecológica das formigas cortadeiras
VI – A importância econômica das formigas cortadeiras no Brasil
VII – A evolução do uso de agrotóxicos no controle de formigas cortadeiras no Brasil
VIII – Os princípios do Manejo Integrado de Áreas Infestadas por Formigas Cortadeiras
IX – A cultura popular e o ensino sobre o mundo das formigas no Brasil

 


 

I – As formigas cultivadoras de fungos são insetos latino-americanos

As formigas cortadeiras de folhas, conhecidas no Brasil como saúvas e quenquéns, são insetos que ocorrem exclusivamente na Região Neotropical, território tropical que se estende desde a Terra do Fogo na Argentina até o deserto do México – não ocorrem em Fernando de Noronha, no Chile e em algumas ilhas do Caribe. Essas formigas só ocorrem na América Latina e constituem a tribo Attini, onde todas as espécies têm o hábito de cultivar fungos mutualistas, sendo conhecidas cerca de 200 espécies com essa característica no continente [1].

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As cortadeiras, apesar de coletarem folhas, flores e frutos, são animais fungívoros e não vegetarianos, isto é, elas se alimentam de fungos que são nutridos com os vegetais coletados. Os pedaços de folhas são cuidadosamente processados dentro do ninho para servir de substrato ao crescimento de um fungo mutualista que é a base alimentar da colônia. Esses insetos coletam partes vegetais para produzir o próprio alimento e, por isto, também são chamadas de formigas cultivadoras de fungos ou formigas agricultoras.

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A primeira descrição científica da popular saúva foi feita pelo pai da taxonomia moderna, Carolus Linneaus, na sua obra ‘Systema Naturae’ (1758), recebendo ali o nome científico de Atta sexdens. No Brasil, as primeiras coleções de formigas para fins especificamente taxonômicos foram feitas no início do século XX para o Museu Paulista da Universidade de São Paulo [1].

No Brasil ocorrem 9 das 19 espécies de saúvas conhecidas e 24 das 32 espécies de quenquéns. A atividade das formigas cortadeiras representa a maior taxa de herbivoria natural nas florestas tropicais latino-americanas, ocupando o espaço ecológico que em outros continentes é reservado aos grandes herbívoros [2]. As formigas cortadeiras são cotadas como um dos principais grupos de herbívoros encontrados na Amazônia [3] e no Cerrado [4], consumindo entre 12 e 17% da produção de folhas nesses ecossistemas, onde são encontradas em densidades de até 7 colônias adultas por hectare.

O Brasil é o maior produtor agrícola da América Latina e há alguns anos assumiu a liderança do consumo mundial de agrotóxicos, destinando somente ao controle de saúvas e quenquéns na agricultura cerca de 6.000 toneladas por ano de iscas formicidas a base da molécula sulfluramida, que é classificada como Poluente Orgânico Persistente – POP pela Convenção de Estocolmo [5]. O Brasil e os demais países latino-americanos que integram a Convenção de Estocolmo assumiram o compromisso de banir totalmente o seu uso no futuro, apesar de ainda não haver um agrotóxico substituto da sulfluramida com o mesmo nível de eficiência e baixos custos, de modo que a história da nossa convivência com esses insetos no continente ainda nos reserva muitas novidades para as próximas décadas.

 

II – As formigas cultivadoras de fungos e os povos indígenas americanos

A constante atividade de herbivoria das formigas cultivadoras de fungo, que habitam as Américas há talvez 50 milhões de anos, influenciaram todos os sistemas agrícolas desenvolvidos há 10.000 anos no continente, inclusive os atuais. Infelizmente, não são conhecidos muitos registros da cultura ameríndia em relação ao convívio e manejo desses insetos antes da chegada de Colombo ao continente.

Os diversos sistemas agrícolas pré-colombianos foram capazes de superar, de algum modo, a atividade desses herbívoros, tendo em vista o sucesso obtido na domesticação de inúmeras espécies vegetais que em 500 anos alcançaram importância global, entre elas o milho, batatas, mandioca, abacaxi, pimentas, amendoim, abóboras, maracujás, tomates, feijões, tabaco, cacau, mamão, caju, seringueira, açaí e uma infinidade de outras plantas úteis ao homem.

Os povos indígenas americanos possuem uma grande cultura ecológica em torno do mundo dos insetos, refletindo a convivência com uma grande variedade de espécies nativas que são importantes na sua cultura, mitologia e cotidiano, especialmente na região tropical. Temos o exemplo da ciência sobre os insetos dos povos Baniwa [6], ou “Conhecimento Entomológico Baniwa”, termo cunhado por pesquisadores e estudiosos admirados pela riqueza dos seus conhecimentos tradicionais relacionados à classe Insecta. O conhecimento entomológico Baniwa sobre a ordem Hymenoptera – um dos maiores grupos de insetos do planeta, formada exclusivamente pelas formigas, abelhas e vespas – inclui aspectos de sua morfologia, habitat, etologia, relações ecológicas, modo de vida, gênero, forrageamento, época de ocorrência, associação com fenômenos naturais e ecológicos, nicho ecológico e associação planta-inseto [7].

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Sobre as formigas, os Baniwa discriminam o nome de 52 espécies existentes na região, incluindo o nome de 11 espécies de formigas cortadeiras, das quais ao menos 4 seriam comestíveis. Em relação à classificação biológica moderna da família Formicidae, os Baniwa detêm especial conhecimento sobre as formigas das sub-famílias Myrmicinae (saúvas, quenquéns e formigas-de-fogo), Ponerinae (tocandiras), Ecitoninae (formigas de correição) e Formicinae (formigas doceiras). Esse conhecimento biológico na cultura dos Baniwa ilustra a importância da fauna de insetos para os povos americanos e, possivelmente, reflete a base do seu sucesso no desenvolvimento dos sistemas agrícolas no continente.

 

III – As formigas cortadeiras e os colonizadores europeus

Apesar de não ser conhecida a importância das formigas cortadeiras para os povos americanos antes da conquista das Américas pelos europeus, as notícias dadas por exploradores e colonizadores sobre a presença desses admiráveis e temíveis insetos em várias regiões do continente causou forte impressão no Velho Mundo. Uma breve coletânea de registros históricos do encontro dos europeus com as formigas cortadeiras é apresentada no quadro a seguir [8].

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IV – Os primeiros estudos e campanhas de controle das cortadeiras no Brasil

A primeira notícia que se tem no Brasil de estudos científicos visando o estudo de cortadeiras para o desenvolvimento de métodos de controle remonta a 1915, quando o cientista Oswaldo Cruz foi consultado pelo presidente do Estado do Rio de Janeiro, Nilo Peçanha, sobre a possibilidade de uma campanha em terras fluminenses contra a saúva, a exemplo daquela que ele havia realizado contra mosquitos e ratos, pois, afinal, ‘já era tempo de dar início à luta contra o pior inimigo da lavoura fluminense’ [9]. Oswaldo Cruz aceitou a incumbência e pôs-se, então, a estudar a formiga, sua vida, seus hábitos e seus costumes, com intenção expressa de desenvolver nas colônias uma epidemia mortal contagiosa que dizimaria o formigueiro, valendo-se da circunstância da organização social e modo de vida coletivo das formigas.O formigueiro construído por Oswaldo Cruz para seus estudos do controle biológico das saúvas, ilustrado abaixo, faz parte do acervo da Casa Oswaldo Cruz, Fiocruz – RJ.

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Enquanto enxergou, Oswaldo Cruz trabalhou sobre as saúvas, mas o descolamento da retina tornou impossível prosseguir. Oswaldo Cruz viria a falecer poucos anos depois, em 1917, sem ter tido a oportunidade de colaborar efetivamente para o desenvolvimento de métodos de controle biológico de infestações desses insetos. Essa mesma linha de pesquisa é atualmente desenvolvida em instituições públicas e privadas de pesquisa no Brasil e exterior, tendo sido gerados resultados animadores – especialmente no controle de quenquéns, mas com menor resultado em campo para saúvas – com o uso de fungos entomopatogênicos dos gêneros Metharizium e Beauveria, entre outros organismos de controle biológico sob investigação [10].

Em relação às campanhas públicas de combate às saúvas, já no século XIX foram adotadas medidas legais contra as epidemias de saúvas – “ como exemplo, podemos citar Minas Gerais no século XIX, onde as determinações legais resultaram em medidas punitivas e sanitárias das áreas infestadas. Os Códigos de Posturas prescreviam que os moradores deviam extrair os formigueiros de quintais e chácaras nos períodos de junho a setembro e os orçamentos municipais destinavam verbas à extinção de formigueiros públicos. Ao adotar a terminologia de formigueiros públicos, a documentação do período demonstra a dimensão político-econômica do problema” [11].

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“Embora as medidas governamentais atinentes à ameaça dos insetos tenha se tornado mais efetiva na década de 1920 com a criação do Instituto Biológico de Defesa Agrícola, ligado ao Ministério da Agricultura e, em 1927, do Instituto Biológico de Defesa Agrícola e Animal de São Paulo, foi somente em 1935 que o Ministério lançou uma Campanha de abrangência nacional contra a Atta[11]. Nessa época, o Ministério da Agricultura avaliava que até 10% da produção agrária do país era atingida pela praga e, quanto aos prejuízos, “o valor girava em torno de um milhão de contos de reis anuais”. As saúvas foram transformadas em questão nacional e, até hoje, seguem sendo pragas principais dos cultivos agrícolas e florestais no Brasil.

 

V – A importância ecológica das formigas cortadeiras

Mais de 13.000 espécies de formigas conhecidas habitam toda a superfície terrestre do planeta, com exceção das calotas polares e algumas regiões desérticas. O Brasil detém a maior diversidade de formigas das Américas, com cerca de metade das espécies conhecidas na região, e uma das maiores do mundo, com cerca de 30% dos gêneros reconhecidos no planeta. A região tropical apresenta maior abundância, frequência e diversida­de de formigas, sendo estima­do que esse grupo representa entre 30 a 50% da biomassa animal terrestre de toda floresta amazônica – o trabalho organizado dessa incrível quantidade de animais faz com que participem ativamente do ciclo da matéria e do fluxo de energia nesses ambientes. [12]

O tamanho de um sauveiro adulto é variável, podendo alcançar mais de 200 m2, com uma população de 3 a 8 milhões de formigas. A engenharia desempenhada por algumas espécies de saúvas inclui mudanças na cobertura e nas características físico-químicas do solo, além de alterações nas condições microclimáticas na área do ninho e suas imediações. Apesar da condição de praga de quase todos cultivos agrícolas, a presença das cortadeiras pode trazer impactos positivos sobre a estrutura química e física do solo, ajudando na aeração e ciclagem de nutrientes.

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Escavação de sauveiro pela equipe do prof. Luis Forti, UNESP/Botucatu

Com um ciclo de vida de cerca de 20 anos entre a fundação e a morte da colônia, um sauveiro interage com com o meio físico e com a biota, causando impactos sobre a estrutura e a composição da vegetação local, podendo alterar positivamente ou negativamente o crescimento, reprodução e sobrevivência das plantas atacadas. Em consequência disso, mas também pela sua agressividade e territorialidade, as infestações de cortadeiras também afetam as comunidades animais em escala local. São engenheiras ambientais, como dizem alguns técnicos, trabalhando em escala de paisagem.

 

VI – A importância econômica das formigas cortadeiras no Brasil

As perdas e prejuízos causados à produção agrossilvipastoril pelas formigas cortadeiras são um problema latino-americano, causando consideráveis prejuízos econômicos em diferentes regiões ao cortarem grandes quantidades de biomassa vegetal em áreas de pastagem, cultivos comerciais e em florestas nativas e plantadas, além de acarretarem danos na manutenção de jardins e áreas urbanizadas.

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Para manter saudável o cultivo constante do seu fungo, um formigueiro adulto de saúva consumirá anualmente mais de 3 toneladas de cana-de-açúcar por ano, ou 5% da produtividade média da cultura no Cerrado; ou consumirá cerca de 25 kg por dia de pastagens, equivalente ao consumo diário de um bovino adulto em pastagens cultivadas no Cerrado. Prejuízos maiores que 50% em reflorestamentos de eucaliptos na região são causados por infestações não controladas (o caso de várias áreas no entorno de Brasilia e cidades satélites), e quando em altas infestações podem inviabilizar o cultivo de hortaliças, grãos e frutíferas se não houver controle adequado da infestação antes do início dos plantios das culturas domesticadas. Os formicidas de uso agrícola são registrados no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – MAPA e os de uso florestal no Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA.

Na implantação e manutenção de áreas verdes em propriedades públicas e privadas, também via de regra, se faz necessário manter permanente controle das infestações de saúvas e quenquéns, sendo que os setores de jardinagem, urbanismo e infraestrutura pública formam um dos mais importantes mercados consumidores de formicidas no Brasil, sob controle de registro e uso pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA.

O estado do Paraná tem longa experiência com campanhas regionais de controle de infestações de saúvas e os serviços de assistência técnica rural desenvolvem intensas campanhas municipais nas principais regiões infestadas. A mobilização social para as campanhas de controle é liderada pela EMATER-PR e acontece com a participação de instituições de ensino e pesquisa, empresas privadas de assistência técnica, associações e cooperativas de produtores, governos estaduais e municipais, visando a implantação de boas práticas de controle de formigueiros de forma articulada entre os proprietários das microrregiões afetadas.

A EMATER-DF estima que os custos totais com aquisição e aplicação de iscas formicidas representam entre 1,5% e 5% do orçamento para cultivo de forragens para a bovinocultura, entre 0,3% a 1,8% para horticultura, e entre 0,4% a 4,2% para a fruticultura, conforme seus estudos de custos de produção agropecuária no DF publicados em março de 2015 [13].

 

VII – A evolução do uso de agrotóxicos no controle de formigas cortadeiras no Brasil

De uma maneira geral, os formicidas podem ser classificados em 5 formulações diferentes: pós secos, concentrados emulsionáveis, gases liquefeitos, soluções nebulígenas e iscas granuladas. O uso de emulsões, gases, neblinas tóxicas e pós secos deve ser realizado somente por pessoal devidamente treinado e equipado, pois essas formulações estão associadas a grande risco de exposição humana e ambiental. As iscas granuladas dominam o mercado desde seu aparecimento na década de 1970, tendo chegado rapidamente a responder pela maior parte das vendas de formicidas para cortadeiras no mercado nacional.

Na história do controle de cortadeiras no Brasil, a partir do século XVII foram introduzidos o enxofre, arsênio, mercúrio e outros pesticidas inorgânicos que foram utilizados até a 2ª grande guerra mundial, quando os agrotóxicos orgânicos de síntese foram desenvolvidos. Entre os novos e potentes biocidas utilizados a partir da década de 1950, um dos primeiros foi o gás fumigante brometo de metila, substância de amplo receituário agrícola e domissánitário como inseticida, nematicida, fungicida, acaricida, rodenticida e herbicida, sendo tóxico aos animais e às plantas, e que ainda possui autorização e registro de uso no Brasil para o controle de formigas.

A partir da década de 1970, porém, as moléculas organocloradas se tornaram referência no controle de cortadeiras e foram responsáveis pela popularização do uso das iscas inseticidas, devido à sua alta eficiência e baixo custo em relação a outros produtos. As iscas formicidas, de fácil manuseio e baixos cultos de aplicação, são geralmente fabricadas misturando-se o ingrediente ativo do inseticida a uma massa feita de polpa de laranja e óleo vegetal (p.ex. óleo de soja). Entre os organoclorados usados como formicidas, se sucederam o DDT, dieldrin, BHC, aldrin e o dodecacloro, este último tendo dominado o mercado por mais de uma década – todos os organoclorados de uso agrícola foram formalmente banidos no país pelo Governo Federal em 1993, devido aos comprovados malefícios causados à saúde humana e aos sérios impactos agrícolas e ambientais decorrentes dos seus diversos usos.

A partir de 1992, a molécula sulfluramida (Nº CAS: 4151-50-2) tornou-se referência no controle de cortadeiras, uma substância sintética do grupo químico da sulfonamida fluoroalifática. Acontece que a sulfluramida, assim como os antigos formicidas organoclorados, é enquadrada como um Poluente Orgânico Persistente – POP, e seu uso está em processo de banimento pelos países signatários da Convenção de Estocolmo, dentre eles o Brasil. Os POPs, por definição, são substâncias químicas tóxicas para o homem e para os animais, de alta persistência no ambiente, capazes de serem transportados por longas distâncias e tem a característica de serem acumuladas em tecidos gordurosos dos organismos vivos.

Os POPs têm tido uso contínuo como iscas tóxicas às formigas por mais de 50 anos no Brasil, caracterizando uma dependência formal do setor agrícola no uso desses poluentes. O governo brasileiro tem justificado seu uso, junto aos comitês técnicos da Convenção de Estocolmo, como a consequência da falta de sucesso nos esforços realizados a nível nacional para substituir essa molécula por outra substância mais segura ao homem e meio ambiente. Na reunião de 2015 da Convenção de Estocolmo (COP 6), o Ministério das Relações Exteriores do Brasil notificou novamente a Convenção sobre a necessidade do país manter como ‘finalidade aceitável’ o uso da sulfluramida como formicida no controle de cortadeiras no país – essa situação será reavaliada pelos países e pela Convenção num prazo de 5 anos. O Plano Nacional de Implementação da Convenção de Estocolmo sobre os POPs indica que, no Brasil, são utilizadas mais de 30 toneladas de ingrediente ativo puro da sulfluramida por ano para a produção de iscas formicidas [14].

Outros problemas têm sido associados ao uso indiscriminado de formicidas, como a falta de padronização e critérios técnicos nos ensaios de eficiência agronômica de novas moléculas, o que teria levado à colocação no mercado de produtos com baixa ou nenhuma eficiência, situação que finalmente regulamentada pela Instrução Normativa Nº 36/2009 do MAPA. Outra preocupação constante do governo e da indústria de agrotóxicos é o uso de produtos ilegais no Brasil, situação que tem exigido a realização de campanhas educativas para a aquisição de produtos legais e de ações de fiscalização e apreensão de produtos formicidas irregulares, sem indicação de uso, clandestinos e/ou falsificados.

Entretanto, além de outras questões de saúde pública e ambiental, o uso incorreto de formicidas ainda é uma das maiores razões para o insucesso prático no controle de colônias no campo, o que leva diretamente ao uso repetido, indiscriminado e arriscado desses poluentes em áreas agrícolas e urbanas de todo o país, realizado por pessoas muitas vezes leigas e sem orientação técnica, as quais desconhecem as indicações da bula e rótulo que deveriam acompanhar os produtos apresentando as instruções de boas práticas no seu uso. Para verificar essa preocupante situação, basta perguntar aos usuários de formicidas se eles conhecem as indicações de uso constantes no rótulo e bula dos produtos utilizados – esse problema é similar ao enfrentado pela área da saúde humana quanto à automedicação e o uso indiscriminado de remédios pela população brasileira.

 

VIII – Os princípios do Manejo Integrado de Áreas Infestadas por Formigas Cortadeiras

Após ter sido constatado, no início dos anos 60, que não se podia depender somente dos produtos químicos para um adequado controle dos efeitos dos insetos na agricultura e na saúde humana, cresceu novamente o interesse pelo desenvolvimento de métodos alternativos e complementares aos químicos. Nas últimas décadas buscou-se desenvolver uma nova mentalidade no que diz respeito ao controle de pragas, através do uso de um conjunto de medidas que se convencionou chamar Controle Integrado de Pragas. O controle é denominado integrado quando agentes químicos apropriados são usados paralelamente aos controles físico e biológico, com base no monitoramento das infestações. Quando o controle do complexo de pragas envolve a compreensão da ecologia do ecossistema agrário e do ambiente ao seu redor, agregando métodos culturais e ambientais de manejo de pragas, o termo Manejo Integrado de Pragas/MIP é empregado [15].

O comportamento social determina o grande sucesso ecológico das formigas, abelhas, vespas e cupins em todas as regiões do mundo, fenômeno que deve ser compreendido para o sucesso no controle de infestações desses insetos em quaisquer áreas urbanas ou rurais.

Todas as formigas são insetos eusociais, isto é, têm comportamento verdadeiramente social, devido a três características: 1) indivíduos da mesma espécie cooperam nos cuidados das crias, 2) há uma divisão reprodutiva do trabalho, onde indivíduos mais ou menos estéreis trabalham em benefício da reprodução de indivíduos férteis, e 3) há sobreposição de pelo menos duas gerações na colônia, onde indivíduos mais jovens trabalham em prol de indivíduos mais velhos e das formas imaturas.

O controle de infestação de formigueiros não é limitado por falta de tecnologia de eliminar diretamente uma ou outra formiga individualmente, para o que bastaria usar qualquer spray inseticida de uso doméstico adquirido nos supermercados. O difícil é controlar toda uma uma colônia de formigas devidamente protegida no seu ninho subterrâneo, onde a eliminação apenas parcial das operárias não comprometerá a sobrevivência da colônia, pois novas operárias serão produzidas e assumirão seu trabalho na colônia. A estrutura social e o ciclo de vida das colônias de formigas torna necessário considerar, conforme o perfil de cada infestação de formigueiros, um conjunto de técnicas integradas de manejo a serem aplicadas conforme um calendário definido ao longo do tempo.

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O Manejo Integrado de Áreas Infestadas por Formigas Cortadeiras deve ser desenvolvido para cada região incluindo os métodos de levantamento da situação da infestação, as técnicas de prevenção de danos e as técnicas de controle físico, biológico e químico das colônias de cortadeiras que ameacem a integridade das plantas cultivadas.O calendário regional de controle deve ser definido conforme os tipos de cultivos e os níveis de infestação encontrados em cada localidade. Esse tema ainda é muito carente de ações de pesquisa e de educação no Brasil, o que perpetua o ciclo vicioso do uso exclusivo de agrotóxicos nas ações de combate à praga.

 

IX – A cultura popular e o ensino sobre o mundo das formigas no Brasil

A cultura popular tem grande interesse por uma das caracterís­ticas biológicas mais vantajosas das formigas, que é sua organização social e o trabalho em equipe. As formigas estão presentes na Íliade de Homero (séc. VIII a.c.), dando nome ao pequeno e feroz exército liderado por Aquiles, os chamados mirmidões: em grego, myrmex significa formigas. Outro exemplo é a fábula das formigas e da cigarra, atribuída a Esopo (séc. VI a.c.) e recontada por La Fontaine (séc. XVII), que também foi popularizada no Brasil graças à brilhante adaptação feita por Monteiro Lobato, onde a cigarra não é mostrada de modo depreciativo e merece o reconhecimento da formiga boa, enquanto a formiga má demonstraria sua inveja da cigarra por não saber cantar.

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Duas populares expressões mostram o imaginário em torno das formigas cortadeiras:

  • “Ou o Brasil acaba com as saúvas ou as saúvas acabam com o Brasil”, atribuída ao naturalista frances Auguste de Saint-Hilaire que, no séc. XIX, ficou impressionado com a dispersão geográfica e a voracidade dessas formigas;
  • “Pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são”, uma irônica crítica à corrupção feita por Mário de Andrade (séc. XX) no seu famoso livro Macunaíma.

Boa parte da população brasileira reconhece, com naturalidade, a presença das grandes colônias de cortadeiras nos gramados e jardins das cidades e dos campos, as quais são identificadas através dos típicos montes circulares de terra solta que se acumulam sobre o solo como resultado da construção dos ninhos das saúvas escavados no subsolo. O problema de controlar a evolução da infestação de cortadeiras é uma realidade compartilhada pelo setor rural e pela população urbana, pois afeta indistintamente áreas produtivas e as áreas gramadas e arborizadas das cidades.

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O Brasil detém a segunda maior diversidade de espécies de formigas do planeta e reúne, possivelmente, o maior número de cientistas, pesquisadores e alunos desenvolvendo estudos sobre diversidade e classificação de formigas em um único país. As coleções científicas de formigas brasilei­ras são as mais representativas da re­gião Neotropical, tanto pelo número de espécimes-tipo quanto pela imen­sa quantidade de espécies nelas depo­sitadas, provenientes de uma área ge­ográfica consideravelmente extensa [1].

Os princípios de manejo integrado de pragas têm sido ainda pouco difundidos nas atividades de pesquisa aplicada, ensino agrícola e assistência técnica rural em referência ao manejo de áreas infestadas por formigas cortadeiras no Brasil, que muitas vezes se concentram no desenvolvimento de novas moléculas inseticidas e nas boas práticas de uso de formicidas químicos, o que colabora para a atual dependência e para o mau uso de produtos perigosos ao homem e ao meio ambiente com essa finalidade.

As formigas cortadeiras representam um problema que deve ser solucionado com recursos humanos e tecnológicos adequados à diversidade de condições sociais e ambientais da região. Quanto à influência e impactos das mudanças climáticas sobre a agropecuária e os agroecossistemas, o estudo da resiliência das cortadeiras poderá ser importante para manter atualizadas as perspectivas de adequação dos sistemas de produção a novas condições ambientais de produção.

 

[1] Guia para os Gêneros de Formigas do Brasil. INPA. 2015.

[2] Hölldobler, B. & E.O. Wilson. 1990. The ants. Cambridge, Belknap/Harvard University Press, 732p.

[3] CARVALHO, K. S.; BALCH, J.; MOUTINHO, P. Influências de Atta spp. (Hymenoptera: Formicidae) na recuperação da vegetação pós-fogo em floresta de transição amazônica. Acta Amazônica. v. 42, n. 1, p. 81-88, 2012.

[4] Costa, A.N. 2013. Efeitos diretos e indiretos das formigas cortadeiras de folha (Atta) sobre a dinâmica da vegetação em uma savana neotropical. Tese, UFU, MG.

[5] Inventário Nacional de Novos Poluentes Orgânicos Persistentes (Novos POPs) de uso industrial: Convenção de Estocolmo / Ministério do Meio Ambiente. Brasília: MMA, 2015.

[6] Os índios Baniwa, que se autodenominam Walimanai, vivem na fronteira do Brasil com Colômbia e Venezuela, nas cabeceiras do Rio Negro. Algumas comunidades estão próximas a centros urbanos como São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel e Barcelos, noroeste do Amazonas. A população dos Baniwa no Brasil foi estimada em torno de 6.000 pessoas em 2012, enquanto na Colômbia e Venzeuela cerca de 10.000 pessoas em 2000. Fonte: Instituto Socioambiental ISA.

[7] Petiza, S. Et al. “Etnotaxonomia entomológica baniwa na cidade de São Gabriel da Cachoeira, estado do Amazonas, Brasil”. UFPA : Amazônica – Revista de Antropologia, Vol. 5, No 3, Especial: 708-732, 2013.

[8] Fonte: WILCKEN, C. F.; BERTI FILHO, E. Controle biológico de formigas cortadeiras. Anais… III Curso de Atualização no Controle de Formigas Cortadeiras. PCMIP/IPEF, p.1-5, 1994.

[9] Fontes: http://www.fiocruz.br/biosseguranca/Bis/Biograf/ilustres/oswaldocruz.htm e http://www.projetomemoria.art.br/OswaldoCruz/biografia/04_guerra.html, consultadas em 21/02/16.

[10] XXI SIMPÓSIO DE MIRMECOLOGIA, 2013. Fortaleza – Ceará. Anais… Universidade Federal do Ceará, 2014. 505p.

[11] “O Brasil contra a saúva: considerações sobre a Campanha Nacional de 1935”. Silva, V.M. Cad. Pesq. Cdhis, Universidade Federal de Uberlândia, v.23, n.2, jul./dez. 2010.

[12] Guia para os Gêneros de Formigas do Brasil. INPA. 2015.

[13] Fonte: http://www.emater.df.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=75&Itemid=87, consultada em 21/02/16.

[14] Plano Nacional de Implementação Brasil: Convenção de Estocolmo / Ministério do Meio Ambiente. Brasília: MMA, 2015.

[15] Adaptado de: Jaccoud, D.B. “Formigas cortadeiras: princípios de manejo integrado de áreas infestadas”. IBAMA/DITEC, Série Meio Ambiente em Debate, 54p, 2000.

[16] INPA